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Consciência Negra: vozes, memórias e futuro em construção

Unesc conta com Neabi e fará parte de atividades em alusão à data. (Fotos: Arquivo/Agecom/Unesc)

No Brasil, o dia 20 de novembro — data que marca a morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares e símbolo máximo de resistência à escravização — é, há mais de 50 anos, uma data dedicada à reflexão, à luta e à celebração da história do povo negro. Mais do que um feriado, o dia se tornou um chamado coletivo para recordar, reconhecer e reconstruir narrativas silenciadas ao longo dos séculos.

Em Criciúma, a mobilização tem rosto, nome e trajetória. À frente do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) da Unesc está a professora Normélia Ondina Lalau de Farias, uma das referências da luta antirracista na região. Para ela, a esperança é que, um dia, o Brasil não precise de uma data para lembrar da importância do povo negro porque esse reconhecimento estará plenamente incorporado à sociedade.

“Temos que nos aprofundar cada vez mais. Precisamos conhecer as histórias de outros povos para entender o que resultou da diáspora e quais foram as contribuições que esses povos trouxeram para as nações”, afirma.

Para a reitora em exercício da Unesc, Gisele Silveira Coelho Lopes, o Dia da Consciência Negra nos convoca a reafirmar, todos diariamente, o compromisso da Unesc com a diversidade e com o enfrentamento ao racismo. “Ao destacarmos a história e as contribuições do povo negro, fortalecemos uma comunidade acadêmica mais respeitosa, inclusiva e consciente. A transformação social que buscamos não acontece apenas em novembro: ela se constrói todos os dias, com atitudes que formam cidadãos capazes de promover um futuro mais justo e plural”, afirma a reitora em exercício, Gisele Silveira Coelho Lopes.

Contribuições dos povos africanos: ciência, tecnologia e conhecimento

Normélia defende que o 20 de novembro não é apenas uma homenagem, mas um resgate urgente. “Essa data existe em alusão ao expoente maior da negritude, Zumbi dos Palmares, que dedicou sua vida à liberdade do seu povo. Mas o dia 20 representa a importância da ancestralidade e de todo o conhecimento trazido pelos nossos ancestrais, o povo escravizado, resultado da diáspora africana, que contribuiu para engrandecer e formar esta nação”, destaca.

A professora reforça que esses conhecimentos foram sistematicamente apagados ao longo da história. “Foram povos que desenvolveram escrita, dominaram metais, criaram sistemas matemáticos, filosofia e conhecimentos na área da saúde. Inovavam desde os primórdios. Mas tudo isso foi negado, invisibilizado, para manter a lógica de que eram povos sem tecnologia ou ciência. A invasão do continente africano não foi por acaso. Havia interesse no conhecimento que eles já tinham”, afirma.

 

Cultura, resistência e permanência

Normélia lembra que, mesmo diante da violência e do silenciamento histórico, práticas culturais sobreviveram como forma de resistência. “O toque dos tambores é um exemplo. Veio da África como forma de comunicação e resistência. Hoje muita gente toca e dança, mas não reconhece a importância ancestral disso”, aponta.

Para ela, compreender esse legado é fundamental para entender quem somos enquanto sociedade. “O povo negro sempre teve enorme valor e contribuiu decisivamente para o desenvolvimento desta nação e do mundo. Depois da África, o Brasil é o país com maior população negra. Isso mostra o quanto carregamos cultural, tecnológica e cientificamente”, completa.

 

Aquilombar: encontro, memória e reparação

Em alusão ao Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, o Parque da Prefeitura de Criciúma receberá, a partir das 16h, o 4º Aquilombar – Por Reparação e Bem Viver, um encontro que reafirma a importância da cultura afro-brasileira e fortalece a reflexão sobre a luta antirracista no município.

A iniciativa envolve a Unesc, movimentos sociais, a Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial (Copirc) e o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Compirc), consolidando-se como um dos mais significativos eventos da região em memória e resistência negra.

A coordenadora da Secretaria de Diversidade e Políticas de Ações Afirmativas da Unesc, Janaína Damásio Vitório, enfatiza o simbolismo do evento e sua conexão direta com a trajetória de resistência negra no Brasil.

“Mesmo antes do feriado ser decretado oficialmente em nível nacional, Criciúma já reconhecia o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra. Há quatro anos realizamos o Aquilombar com o propósito de parar, refletir e pautar a sociedade sobre o racismo estrutural e institucional”, afirma ela, que também é vice-presidente do Compirc.

Segundo ela, o Aquilombar também combate o avanço do racismo religioso. Janaína lembra que o tema deste ano acompanha o movimento nacional da Marcha das Mulheres Negras, que terá sua segunda edição em 25 de novembro, em Brasília. Janaína explica que a escolha do tema reflete urgências sociais que atravessam recortes de raça, gênero e classe.

Trabalhamos com pautas nacionais porque o racismo opera da mesma forma em todo o país. A marcha deste ano busca reunir um milhão de mulheres negras para discutir reparação, bem viver e denunciar desigualdades que continuam nos atingindo de forma profunda”, destaca.

Ela cita dados recentes que evidenciam essas desigualdades. “Uma pesquisa divulgada em setembro mostrou que, embora o salário das mulheres tenha aumentado no Brasil, o das mulheres negras continua entre os menores. Isso mostra como raça e classe seguem determinando nossas oportunidades”, analisa.

“Também tratamos de violência obstétrica, feminicídio e outras violências que têm números mais elevados entre mulheres negras. É por isso que falar em reparação e bem viver é urgente”, completou Janaína.

Janaína reforça que a valorização da intelectualidade negra local também é um dos pilares do evento. “Estamos avançando na academia e descobrindo muitos pesquisadores e escritores negros aqui da região. É importante sair do eurocentrismo e reconhecer nossos próprios intelectuais”, afirma ela, informando ainda a participação das religiões afro-brasileiras no evento.

A programação conta com Feira de Afroempreendedores; apresentações das Escolas Municipal EMEB Linus João Rech e Giacomo Zanette; Cia de Dança da Unesc; Toque de batuque e reza; Coletivo Aracuã – Maracatu; Maigol; Grupo CM4; Veveto; Batalha de rima LK; V Negão; Beaking Projeto TREM Casa do Hip Hop Flor e Ser. O encerramento contará com a apresentação do pagode no Clube União Operária.

 

Contribuições especiais

Ao refletir sobre ciência, tecnologia e organização social, conforme Normélia, é impossível ignorar a centralidade do continente africano. Ela pontua alguns exemplos que tiveram o povo negro teve contribuição:

 

Matemática e sistemas de contagem

Com instrumentos como o Osso de Ishango — datado de mais de 20 mil anos, encontrado na região do atual Congo — povos africanos já aplicavam cálculos avançados muito antes de outras civilizações. Sistemas numéricos e calendários agrícolas surgiram no Vale do Nilo e influenciaram diversas culturas.

Astronomia e elaboração de calendários

Observatórios naturais, como o círculo de pedras de Nabta Playa, no Sudão, revelam domínio dos ciclos solares e lunares para orientar agricultura, rituais e organização comunitária. “A África foi pioneira em compreender os ciclos do tempo”, ressalta.

Metalurgia e engenharia avançada

Povos de regiões como Nok (Nigéria), Meroé (Sudão) e Mali dominaram complexos processos de fundição de ferro, cobre e bronze, impulsionando tecnologias que influenciariam toda a humanidade.

Na engenharia, construções monumentais como as pirâmides e as cidades planificadas do Império Mali evidenciam cálculos sofisticados, alinhamento astronômico e organização social.

 

Agricultura e domesticação de plantas e animais

“A África foi centro pioneiro no desenvolvimento de sistemas agrícolas que influenciaram até hoje a alimentação mundial”, explica a professora. Produtos como sorgo, café e arroz africano nasceram ali, juntamente com técnicas avançadas de irrigação e manejo sustentável.

 

Navegação e rotas comerciais

Há evidências de que povos africanos elaboraram embarcações robustas e estabeleceram rotas comerciais com a Ásia e possivelmente as Américas cerca de 12 mil anos antes da Era Cristã. “Isso demonstra a capacidade de inovação e conexão desses povos”, pontua Normélia.

 

Medicina tradicional e estudos avançados do corpo

Plantas medicinais, técnicas cirúrgicas e sistemas diagnósticos foram estruturados por civilizações da África Ocidental, Egito e Núbia, muitos deles absorvidos por outras culturas ao longo dos séculos.

 

Inovação tecnológica contemporânea

A inovação africana continua transformando o mundo. Exemplo disso é o Cardiopad, tablet criado em Camarões que permite a realização de exames cardíacos remotos. “Isso mostra que a África segue sendo um centro de conhecimento, reafirmando seu lugar como berço da humanidade e da inovação tecnológica, não só no passado, mas também no presente”, afirma.

O Aquilombar em Criciúma

O evento aquilombar nasceu no ano de 2021 do desejo do coletivo dos movimentos negros de Criciúma em alusão ao dia 20 de novembro, o dia Nacional da Consciência Negra, data estabelecida com a vigência da Lei Federal nº 10. 639 promulgada em 9 de janeiro de 2003 que implementa a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em toda a educação nacional promovendo o ensino equitativo em consonância as relações raciais do Brasil.

Entre as entidades envolvidas neste ano estão: Anarquistas Contra o Racismo; Entidade Negra Bastiana; Organização Não Governamental de Mulheres Negras Professora Maura Martins Vicência; Neabi; Pastoral Negra; Secretaria de Diversidades e Políticas de Ações Afirmativas; Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Criciúma e Região; e Sociedade Recreativa Clube União Operária.

 

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