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Ecocria

Isca

Caciane Lopes

 

Apresentação do Trabalho

Esse material foi escrito para um trabalho da disciplina de Redação Criativa do curso de Publicidade e Propaganda, onde cada aluno deveria escolher 3 cartas ilustradas do jogo Dixit e elaborar uma história baseada nas ilustrações.
Abaixo são as cartas escolhidas por mim para a base:

 

Isca

Em algum canto do mundo, o céu é cinza e o ar cheira a destruição. Os passos de quem ainda caminha pelas ruas são rápidos e extensos, pois os bombardeios não dão avisos prévios. A guerra é como uma surpresa diária que destrói a pouca vida dessa cidade. Um moço melancólico vai contra a maré e anda em seu próprio ritmo, com passos curtos, lentos e pesados. Seus olhos dourados e cansados não se esquivam do chão batido a sua frente e seus lábios estão comprimidos em uma linha reta, expressando a confusão que habita em sua mente, a qual se encontra em uma espiral de pensamentos.

É claro que Hugo está pensando nela. Há dias que a bela moça se apossou de seu espírito. Ele já não vive como antes, preso a ela. E como poderia? Se ao dormir sonha e inconscientemente deseja voltar para a noite em que se conheceram, minutos antes da grande tragédia. Com a visão das luzes refletindo na pele dourada dela, uma trilha sonora lenta que fazia seu coração bater intensamente e as cortinas que ameaçavam despencar a qualquer momento, arriscando perder a visão da arte mais bela que já havia visto na vida. Em períodos de guerra não se esperava ver beleza de uma forma tão exposta.

O teatro se inebriava com os movimentos suaves dos braços e pernas esguios da jovem desconhecida. Desconhecidos já eram algo comum, não era esperado reconhecer a pessoa com quem se esbarrava nas ruas, pois estavam todos ocupados se protegendo da morte que rondava suas casas. Se agarravam ao que restava de suas companhias e aos solitários, como Hugo, restavam apenas a depressão e a desesperança. Naquela noite, as cortinas não despencaram, mas de repente as luzes se apagaram e o coração de Hugo parou. Um ataque aéreo surpreendia o pequeno público mais uma vez. Ele assistiu o arrependimento de cada pessoa naquele local estampado em seus rostos.

Estavam arriscando suas vidas por um mísero momento de lazer, de paz. Então houve gritos e correria. Hugo sentiu seus pés presos ao chão e um grito preso na garganta. Nunca se acostumaria com aquela cena. Sua memória produziu um filme de altíssima qualidade dos momentos em que um bombardeio como aquele levou um ente querido, deixando Hugo para trás, matutando que deveria ter sido ele. Sentiu vontade de chorar, mas não era hora.

Quando Hugo voltou a realidade, avaliou as poucas opções que tinha. Numa ideação suicida, teve esperança de que fossem os seus últimos minutos de vida e escolheu mais uma vez ir contra a maré. Aos atropelos, correu em direção ao palco em busca da moça, sentindo seu corpo rígido de quem não estava habituado a se exercitar, a viver, a sentir. Encontrou degraus pela frente e suas pernas magras e desajeitadas fraquejaram, mas permaneceu correndo, mesmo quando seus pés começaram a queimar. Em um canto escuro e empoeirado daquele enorme palco, um feixe de luz se fez presente, refletindo um pingente pendurado por um colar que decorava o longo pescoço da moça. Ela franziu o cenho, claramente surpresa por alguém ter permanecido em meio ao caos. Ninguém jamais havia permanecido.

Hugo soltou um ruído, algo como um disco arranhado, mas muito longe de uma palavra completa. Depois de tantos anos de solitude, com todos os que amava a sete palmos da terra, era como uma criança aprendendo a falar. Porém, não foi preciso palavras, porque ela o puxou para perto, impedindo-o de continuar a tentar. Ele se agachou ao seu lado e, pela primeira vez após muito tempo, sentiu cheiro de flores. Achou irônico porque a guerra não permitia a vida nascendo diretamente da terra. Eles permaneceram ali até os estrondos cessarem. Quando finalmente acabou, não havia sobrado muito daquele lugar. Ele pensou ser um milagre ter restado somente o palco, rodeado de destroços. Não sabia se conseguiriam encontrar corpos debaixo de tanto entulho. Ele se voltou para a moça, tremendo como vara verde, e encontrou uma pessoa impassiva.

– Você deve ir – ela disse, com uma voz tão fria que o fez tremer ainda mais. Como podia ser real? A pele negra como a noite e os olhos cinzentos como a lua. Ela era como uma noite de outono com uma brisa fria de congelar os ossos.

– Mas… e você? Tem para onde ir?

– Hugo questionou perturbado. Ela riu, e ele sentiu seu coração palpitar.

– Talvez seja você quem deve se preocupar. O meu mundo permanece intacto.

– O que quer dizer? – ele disse, sentindo a ansiedade dominando. Ela parecia impaciente.

– Só preciso que corra, eles estão vindo.

Não houve tempo de questionar quem era “eles” ou até mesmo quem era ela. Alguém se aproximava gritando: – KÁLI! CADÊ VOCÊ? NÃO É HORA PARA BRINCADEIRAS! Um homem alto se aproximava, vestindo uma farda amarrotada, calçando botas muito bem enceradas, carregando uma arma de fogo nas mãos e no peito a ira do exército inimigo estampada em um distintivo. Parecia nervoso, não como alguém preocupado, apenas como alguém que terminou um trabalho sujo e pesado e desejava retornar para seu conforto. Hugo permaneceu aflito, até a moça gritar em resposta:

– ESTOU AQUI!

– ela virou em direção ao moço

– É melhor correr e agradecer àquele a quem você acredita a oportunidade de permanecer vivo. Só então Hugo reparou que o pingente que tanto refletia era um molde muito descarado daquele símbolo que tanto via sobrevoar a cidade, deixando apenas corpos e destruição. Não sabia se sentia raiva ou paixão, mas algo queimava em seu peito e esse fogo se acentuava conforme a voz do soldado se elevava.

– Não devo agradecer a você? – ele criou coragem para perguntar

– Afinal, você nem ao menos tentou me machucar.

– Eu não sujo minhas mãos, sou apenas a isca. É fácil encantar um povo que só assiste a morte

– ela respondeu seriamente, então deu as costas e correu, sumindo da visão de Hugo como um fantasma. Estático, surpreso e confuso, levou alguns minutos para se recompor e caminhar para fora do que um dia tinha sido seu lugar favorito naquela cidade.

Percebeu que havia um zumbido habitando em seus ouvidos e o cansaço após a adrenalina tomava conta de seu corpo desnutrido. Foi um sacrifício caminhar até o interior da cidade, onde ficava a casa a qual tinha como morada, mas há muito tempo não podia chamar de lar.

Naquela noite ao tentar adormecer, seu espírito ingênuo tentava entender como o ser humano tinha a capacidade de apodrecer o pouco do bom, do bonito, do agradável que restava. Quando a arte havia se tornado armadilha? Quando artistas haviam se tornado iscas assassinas? Os dias se passam e durante a noite o inconsciente de Hugo ainda encena danças, passos de valsa entre um casal de desconhecidos.

Ele acorda com taquicardia e não sabe descrever se é ódio ou paixão. Não importa o que seja, a dança ainda encanta seu coração e as palavras de Káli ainda destroem sua alma. Nessas caminhadas por destroços, chão batido, corpos e flores mortas, muitas vezes Hugo deseja ter seguido a massa e ter ido contra a música, direto para a morte. Autoria de Caciane D. Lopes Estudante de Publicidade e Propaganda

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