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Ecocria

Conto: Chama

Jussana Adão Fernandes

A iniciativa do projeto foi a criação de um conto literário de método livre baseado e três cartas de incentivo escolhidas em sala. Segue a baixo as cartas escolhidas.

“Então o universo era apenas silêncio, imobilidade e trevas.”
Edgar Allan Poe – o poço e o pêndulo

Quando o vento soprava mais forte, uma espécie de assobio era ouvido pelos corredores quase vazios do castelo. As trevas pareciam famintas pela luz que exalava dos candelabros de forma fugaz. Apesar delas, a noite era sempre seguida do frio, que parecia se esgueirar pelas frestas de portas e dobradiças, com materiais tão envelhecidos quanto o tempo que o lugar fora construído. As paredes moldadas em barro e pedra colaboraram com o cenário, obscurecendo a cada tic-tac dos relógios. Até mesmo os quadros espalhados pelos salões, se vivos, poderiam facilmente descer de suas molduras empoeiradas e aconchegar suas roupas espalhafatosas perto da lareira mais próxima, e ainda assim seus estômagos se embrulhariam a cada pequeno ruído ao acaso.

Se não bastasse, algo mais cooperaria para que o medo dominasse o ambiente naquela noite. Algo abaixo dos grandes salões, algo escondido no fundo, do fundo daquele breu, cinco lances de escada abaixo, onde fi cavam as masmorras. Algo que aos poucos tomava consciência de si, dentro de um ornamento de metal e ouro, se remexia apertando e espremendo, descobrindo que o frio que rodopiava ao seu redor era o detentor de suas perturbações.

Não tinha braços ou pernas, no lugar de membros humanos longos tentáculos que se embrenham uns nos outros como um ninho de cobras pegajosas, sem olhos ou boca, apenas uma massa visceral lisa e negra como piche, cheirava a enxofre e sangue fresco. A coisa não sabia o que era, e tão pouco se importava, mas sua perturbação era enraizada no desconforto, esse era o princípio, se o frio era incômodo, logo precisava do calor, podia até mesmo senti-lo acima de si, corpos quentes prontos para serem devorados pela escuridão de seu corpo, como o fogo. Se lembrava do fogo, recordava as labaredas que queimavam eternamente, junto aos gritos de desespero dos condenados, em um lugar que dava a ele o mesmo sentido que os humanos batizaram de lar.

O guarda tinha apenas uma função, cuidar da porta de metal enferrujada que dava para as masmorras. Não havia um desertor, assassino, ladrão ou oportunista, no fi nal daquelas escadas um único baú de ouro descansava atrás das grades como se pudesse criar pernas e andar pela cela trancada. Quanto mais a noite caia e o frio entrava pelas frestas da armadura, mais pesado Raven sentia o ambiente ficar, como se até mesmo as pequenas chamas que o iluminavam quisessem se esconder na penumbra.

O soldado de ouro, assim era chamado, recebeu essa honra por causa dos méritos de coragem em batalhas e por algo que somente poderia ser descrito como uma confiança inabalável, quando ele mostrava aos reis e rainhas dos continentes sua face jovial e o par de olhos azuis envolta das madeixas loiras, geralmente era recebido com agrado, ainda que as situações não fossem oportunas, sua vinda sempre fora sinal de boa fortuna, entretanto não se sentia como ele mesmo desde que aceitou a missão. Quando tocou o baú pela primeira vez, dias atrás, a primeira coisa que sentiu foi medo. Depois raiva. Logo algo semelhante ao desespero. Pesadelos tomavam conta das suas noites e uma ansiedade constante o assolava todos os dias. O desespero estava acompanhando seus passos, assim como as vozes, vindas de todos os cantos como um tipo sussurro ao acaso. Ele segurava forte a bainha de sua espada, como que com medo do que aconteceria se soltasse.

Havia algo errado, era palpável ao ponto de todos ao seu redor evitarem assunto, ainda que o baú tenha ficado intacto e perfeitamente fechado de forma que nenhum mestre de chaves conseguiu abri-lo, fora trazido como um objeto maquiavélico desprovido de qualquer benção. Por todos os lados que cruzou coisas estranhas vinham acontecendo. Mortes misteriosas, pessoas enlouquecendo, relatos de bestas e almas vagantes, a cachorra de caça que se recusou a entrar na carruagem, correndo para o meio do mato durante o caminho.

Os barulhos que escutavam dentro e fora do castelo, reclamações de urros de pessoas, de berros de crianças e choros desesperados. Uma histeria coletiva parecia aos poucos tomar conta de todos ao redor do maldito baú. A situação teve seu estopim final com o suicídio na garota.

A menina de apenas 13 anos se jogando do alto de sua sacada, reclamava ao pai dia e noite sobre o objeto. Sobre uma voz que a perseguia e invadia seu quarto durante a noite. Raven viu os sinais claramente, e ainda assim algo como uma teimosia que beirava a arrogância o conduzia. Ele era o cavaleiro de ouro, era a armadura dourada, não havia monstro que ele não poderia combater, desafiante que não poderia subjugar. Ou pelo menos deveria ser.

O pai da moça foi justamente quem o trouxe para guarda-lo. No pouco tempo que esteve com o Duque, teve a certeza que o homem tão pouco estava no juízo perfeito. Qualquer pai teria pedido para que os servos jogassem o objeto no fundo do mar dos quatro cantos do mundo, mas o homem de olhar vazio apenas bebeu de uma taça de vinho servida até a borda e disse estupefato:

O maldito baú vai ficar aqui comigo, ambos vamos juntos para o inferno. Seu trabalho é só cuidar da porta até que o sacerdote venha…

Ele se ergueu de sua cadeira indo em direção a Raven até fi car face a face com a armadura. Ele era menor em tamanho e estatura, mas sua soberba era com toda a certeza superior
Acha que pode fazer isso menino de ouro?

Suas lembranças e pensamento foram interrompidos por um barulho que ecoou pelo castelo expandindo e cobrindo o lugar para a primeira badalada dos relógios que marcava a meia noite.

Tam* Tam* Tam* Crack

Ele ouviu um ruído que se diferenciava do relógio, vindo da porta. Sua armadura rangeu quando se virou rapidamente. Continuava trancada e imóvel, entretanto o barulho atrás dela era novo e parecia cada vez maior, se ampliando e se fundindo com a dos relógios. Manteve sua postura ainda mais rígida, como se estivesse congelado onde estava.

Mas que diabos foi isso?
A pergunta apenas morreu no ar sem uma resposta.

Tam* Tam* Tam*

Não ousou sequer suspirar enquanto terminava o badalar, o barulho ao fundo se mesclado com dos sinos. Ele tentava distingui-lo, mas parecia cada vez mais como outra peça de sua cabeça, sua manopla se agarrava tão fi rme a bainha da espada que seus dedos pareciam querer rachar, seus pés se posicionando por instinto para uma batalha.

Tam* Tam* Tam*

… crack*

O barulho vindo de trás dele, o fez desviar o olhar por um segundo. Aquele mísero segundo de desatenção, foi o tempo necessário para que a porta se abrisse em um estrondo, um vento como se uma tempestade corresse pela sala. Os candelabros ao redor se apagaram um a um rendendo-se ao escuro.

Na escuridão a verdade é tão concreta quanto um pensamento ao acaso isso é fato. No entanto, como convencer sua mente de que o que se sente, ouve e vê não é real? Como convencer a si mesmo que a loucura reside onde a sanidade deveria morar. Vozes em seus ouvidos o faziam questionar algo tão efêmero como a sanidade. Vozes femininas, masculinas, de crianças, a voz da filha do duque “Não vai nos proteger?” “

“Nos salve menino de ouro!”

“Covarde, não passa disso!”

“Porque não me salvou?”

CALEM-SE, CALEM-SE

berrou desembainhando sua espada enquanto cortava o ar ao seu redor as vozes riram de suas tentativas falhas, enquanto ele sentiu alguma coisa se arrastar na escuridão, o vento ainda sobrando fazendo seus olhos arderem, o cheiro de enxofre cobrindo o ar como uma nuvem de fumaça, ele cortava e cortava em vão, então de repente parou.
Por um momento ele se virou em todas as direções tentando enxergar alguma coisa que fosse, mas nem mesmo as vozes eram escutadas, então calor… Um calor estranho o atentou novamente para trás daquela porta escancarada, com o que viu o ar ao seu redor pareceu sumir completamente. Degraus que iam fundo e mais fundo.

A personificação do pesadelo que rondava sua mente, ao invés de paredes, o fogo dominava as beiradas, labaredas que vinham de alguma parte do infinito chão. Entre as chamas, aberrações deformadas dançavam saltitantes enquanto ao redor delas seus entes queridos eram queimados um a um, As risadas roucas eram abafadas apenas pelos gritos de dor, pessoas que ele deveria proteger acima de tudo, morrendo em sua frente enquanto seu corpo tremia consumido pelo pavor, se essa era a loucura, ele desejava a morte. Com esse pensamento Raven sentiu a armadura retorcer quando algo se enroscou pela sua cintura apertando com tamanha força que seu diafragma contraiu. O tentáculo negro subiu se embrenhando em sua couraça até arrancar seu capacete que estalou no chão. As chamas do inferno clarearam suas feições revelando um par de olhos azuis inundados de lágrimas. Ele não pensou em se mover. Não pensou em nada quando a entidade abriu espaço pela sua boca e narinas ansiosa pelo calor que as batidas do seu coração acelerado a proporcionariam.

Houve um silêncio naquela noite, perdurou na escuridão do castelo pelo tempo de uma queima de incenso. Depois disso, poderia se ouvir claramente o barulho dos passos pesados de uma armadura de ouro se arrastando para a parte de cima da estrutura de pedra, preenchida com o corpo de um homem que uma vez trouxe a luz da esperança consigo.

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